Uma das características do ser humano é o medo de ser tocado
pelo desconhecido.
Consequentemente, há o desejo de isolamento social, em
que estabelece estratégias comportamentais para não haver qualquer relação com
o outro, ou físico, se fechando dentro de um espaço onde o contato com o
mundo não ocorra, sentindo-se amplamente protegido. A aversão a qualquer
contato é inerente à natureza humana. Essa essência contrasta com a necessidade
de socialização de nossa espécie.
Freud dizia que o indivíduo na sociedade moderna estaria
condenado à infelicidade. O ser humano não é essencialmente gentil, é
agressivo. E a culpa de manter interiorizada tal agressividade o
condiciona a plena insatisfação. Para a civilização moderna, esse impulso agressivo
é o que ameaça a sua existência; a condição civilizada da sociedade sempre está
à beira do precipício da barbárie. Para que não ocorra a queda o impulso individual muitas vezes deve ser sacrificado pelo impulso social.
O indivíduo na sociedade esta condenado à infelicidade
Tal medo e conflito são amenizados no processo de massificação
do indivíduo. A massa é uma integração de indivíduos de diferentes
estratificações sociais, profissionais, sexuais, etc, em torno de algo comum
que os iguale por completo. Por exemplo, uma torcida de um time de futebol. Na massa, além do indivíduo perder o medo do
contato com o outro e com o mundo externo, há o sentimento de proteção e
integração. Tudo é o oposto da individualização. O medo se torna coragem, o que
era reprimido passa a ser liberado.
Patrícia Moreira era apenas uma indivídua comum de nossa
sociedade. Jovem, círculo social natural para a sua idade, funcionária na área de
odontologia de um departamento militar, foi a um estádio para apreciar seu time
do coração. E diante da derrota, fez coro à turba furiosa inconformada com a
apresentação do seu time, destilando seu impulso individual agressivo a uma das
figuras do time adversário, o goleiro Aranha, chamando-o de macaco.
Até aí, nada “incomum” do que já foi visto em diversos
estádios do mundo, mas a moça não contava que a proteção que a massa poderia
lhe dar, para que seus impulsos reprimidos se liberassem, fosse tão frágil
diante de outra ferramenta de massificação: a TV.
Flagrada pelas câmeras, Patrícia Moreira massificadamente se desmassificou, ou
seja, a partir dali a mídia iniciou uma construção falsa de sua individualidade
alçando-a como a mulher mais nefasta do país.
Patrícia Moreira, desmassficada pela mídia massificadora
Na era do espetáculo, a mídia trata todos os fenômenos pelo
viés sensacionalista. Ao mesmo tempo, faz o papel de Estado com a cumplicidade
de seu público: ela testemunha o crime, abre o inquérito, estabelece o
processo, opera o julgamento e condena ao seu bel prazer. É a substituição
bárbara do estado democrático de direito.
Meses atrás, Raquel Sherazade defendeu o linchamento de um menor de idade suspeito de roubo, incitando a população, cansada de
impunidade e da ausência do Estado (que ironicamente é implacável contra
pobres, especialmente os negros), a tomar as rédeas do que se entende por
justiça. Depois de tal declaração houve uma epidemia de linchamento no país.
E o linchamento não é nada mais nada menos do que um fenômeno de massificação.
A turba reunida diante de um suposto criminoso, inocente ou não, libera seus
impulsos agressivos e massacra o indivíduo sem chance de recorrer ao direito
de defesa que a civilização teoricamente lhe garante.
Rachel Sherazade, apologia ao linchamento
Patrícia Moreira, que em seu contexto de indivídua massificada, fazia coro com a massa que massacrava verbalmente o goleiro
adversário, ironicamente foi desmassificada, mas não para ser tratada como um
indivíduo único e especial, mas como um ser merecedor de um massacre, de um linchamento
midiático e social, a ponto de perder o trabalho, o direito de poder sair à rua e ao mesmo tempo assistir à derrocada de sua família, que não possuía relação alguma com o crime
que ela cometeu dentro do estádio.
Todo um roteiro ideológico programado pela mídia hipócrita, que
coloca negros como empregados em suas novelas, que estampa o negro nas suas
manchetes policiais, que trata o negro apenas como pagodeiro, mulata carnavalesca, jogador de
futebol ou protagonista de comercial de café, e que sempre se coloca contra as
cotas raciais em universidades e concursos, desprezando que somos uma sociedade
de maioria negra, mas que esta é marginalizada dos direitos constitucionais
mais básicos.
Tudo se discutiu nessa história menos o racismo e suas
fontes. Quando se dá mais ênfase à racista do que o processo que formula e
mantém o racismo em nossa sociedade, a mídia mata dois coelhos com uma cajadada
só: promove o justiçamento, se colocando como protagonista dos valores que a
turba furiosa necessita e mantém intacta a estrutura ideológica do racismo que
ela mesma reproduz diariamente, se isentando do crime racial que ajuda a propagar.
A mídia que condena Patrícia Moreira
é protagonista do Racismo em sua programação
Patricia Moreira, assim como os outros torcedores, merece
ser processada e julgada, mas dentro do que lhe garante o estado democrático de
direito.
Quando tratamos um
criminoso sem a humanização que lhe cobramos, em nada diferimos dele. Dentro de
um processo civilizatório, a pena para um criminoso é muito mais do que lhe
negar o convívio em sociedade ou lhe imputar ações (como trabalhos comunitários) contra a sua vontade. Deve se focar também a sua reeducação para se conscientizar de que fez algo
errado e não reincidir em tal prática.
Assim como se destrói um indivíduo por meio de
qualquer ato de discriminação, não se humaniza alguém o destruindo, como estão
fazendo com Patrícia Moreira. De nada vale defender a civilização sendo tão
bárbaros quanto os que a ameaçam.
"O ser humano não é essencialmente gentil, é agressivo. E a culpa de manter interiorizada tal agressividade o condiciona a plena insatisfação."
ResponderExcluirPerfeito...
Assim como se destrói um indivíduo por meio de qualquer ato de discriminação, não se humaniza alguém o destruindo, como estão fazendo com Patrícia Moreira. De nada vale defender a civilização sendo tão bárbaros quanto os que a ameaçam.
ResponderExcluirÉ por aí...
Li mais uma vez. Ótimo texto. Parabéns!
ResponderExcluirÓtimo texto!
ResponderExcluiros veículos midiáticos crescem de forma geométrica, em contra partida, o sistema de leis que os regulamentam avança de proporção aritmética.
Será a tão falada alienação ou problema da globalização ??
Eis a questão ...